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Até que ponto o público perdoa furos e incoerências nas novelas?

Nilson Xavier

08/08/2014 11h52

Cora (Drica Moraes) é pega de surpresa em

Cora (Drica Moraes) é pega de surpresa em "Império" (Foto: Divulgação/TV Globo)

O capítulo de quinta-feira (07/08) da novela "Império" terminou assim: a vilã Cora (Drica Moraes) se infiltra na loja matriz do todo-poderoso José Alfredo (Alexandre Nero) a fim de deixar um álbum de recortes em sua sala. Já era noite, o expediente havia acabado, ela supunha que o local estivesse vazio e a sala do chefão aberta (!). Mas Cora não contava que José Alfredo ainda estivesse lá, cochilando em um sofá. Ao dar de cara com seu desafeto, ela tenta fugir, mas ele a encurrala. Cora acaba trancada em uma outra sala. Os dois trocam desaforos e o desfecho da cena aconteceu no capítulo de sexta, quando José Alfredo folheou o tal álbum.

Assim que Cora conseguiu chegar à sala de José Alfredo, não faltaram reclamações do público que acompanhava a trama pelas redes sociais. "Só em novela mesmo que uma zé-ninguém como Cora consegue burlar a segurança da loja (que, ao que parece, não existia) e entrar na sala do presidente sem ser vista!". Faz sentido. Na vida real, isso seria praticamente impossível, se considerarmos que Cora não é uma espiã profissional, fez tudo sozinha e não obteve ajuda de alguém que facilitasse o seu acesso.

Entretanto, se não fosse por esse "deslize" (ou furo?), não teríamos esse ótimo gancho e uma das melhores sequências já armadas pelo autor Aguinaldo Silva em sua novela. José Alfredo chamando Cora de "cobra peçonhenta", ou a reação dela, fugindo, pedindo para sair da sala onde ficou presa porque "era cardíaca", refletem o excelente texto de Aguinaldo, irônico, com ótimas tiradas, em personagens tão bem construídos, como José Alfredo, Cora e vários outros, por situações dramáticas envolventes. "Império" vem cumprindo o papel da telenovela, que é entreter e estimular o telespectador a continuar vendo a trama no dia seguinte. Ou seja, segurar a audiência, seu público cativo, e gerar repercussão.

A atual novela das seis, "Boogie Oogie", que estreou nessa semana, reacendeu uma velha discussão. Até que ponto uma telenovela, que se propõe "realista", precisa refletir a realidade nua e crua? A trama de "Boogie Oogie" se passa no ano de 1978, no auge da Era Disco no Brasil. Mas não faltaram dedos a apontar furos em caracterizações (cenários, figurinos, penteados, etc.) e trilha sonora anacrônica. A proposta da novela é refletir fielmente o ano de 1978, ou apenas criar uma ambientação para que o telespectador se situe em tempo e espaço? E é possível simplesmente acompanhar a história e fechar os olhos para esses "furos e deslizes"?

Bianca Bin em

Bianca Bin em "Boogie Oogie" (Foto: Divulgação/TV Globo)

Em "Império", pareceu um absurdo que Cora tenha conseguido facilmente entrar, sozinha, na loja de um rico empresário, a qual, aparentemente, não apresentava recursos de segurança, como alarmes, câmeras ou pessoal gabaritado. No entanto, este entrecho rendeu uma ótima sequência e um excelente desfecho de capítulo.

O público não é bobo, não gosta de ser subestimado. Exige coerência e verossimilhança. E, ao que parece, está cada vez mais exigente, ainda mais com as facilidades que temos hoje em checar informações pela Internet. Mas uma novela que se propõe refletir uma realidade – para ambientar o telespectador, ou com a qual ele se identifique – não precisa exatamente ser realista, afinal, é uma obra de ficção. Também cobro verossimilhança. Mas muito mais do que isso, é importante, pelo menos, haver uma lógica no roteiro, para não descambar para a fantasia deslavada, a que se distancia da realidade.

No caso de "Boogie Oogie", me parece claro que a novela criou uma referência à Era Disco, com todos os seus elementos e signos, muito mais do que uma mera transposição da realidade do ano de 1978. "Boogie Oogie", ao ambientar sua trama, parece ter optado pelo exagero, pela lente de aumento nas referências à Era Disco. É só comparar a novela com a reprise de "Dancin´ Days" (no canal Viva) – produzida em 1978 – para perceber as muitas diferenças.

Quanto a "Império", o deslize (ou furo) pode ser perdoado, já que "os meios justificaram os fins". Cabe, neste caso, citar a célebre frase de Glória Perez: "É preciso voar!". A novela divertiu e fez esquecer a realidade.

Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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