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Ricardo Linhares, de Babilônia, já abordou a intolerância em Saramandaia

Nilson Xavier

31/03/2015 19h23

Dona Redonda (Vera Holtz) e Seu Encolheu (Matheus Nachtergaele) (Foto: Divulgação/TV Globo)

Dona Redonda (Vera Holtz) e Seu Encolheu (Matheus Nachtergaele) (Foto: Divulgação/TV Globo)

A intolerância foi um dos temas que Ricardo Linhares discutiu na adaptação da clássica novela de Dias Gomes.
O DVD chega no momento de boicote à sua nova novela, "Babilônia" (escrita com Gilberto Braga e João Ximenes Braga).

Por esta época, há dois anos, a Globo se preparava para lançar o remake de "Saramandaia", novela originalmente criada por Dias Gomes (exibida em 1976), um marco do realismo fantástico na televisão brasileira. Dois anos depois, a Globo Marcas lança o DVD deste remake, um box com quatro discos, 12 horas de duração, alguns extras e até uma capa holográfica – já à venda nas lojas (preço sugerido R$ 99,99).

Nesta nova versão, adaptada por Ricardo Linhares, a obra de Dias Gomes ganhou uma estética "timburtoniana", com um colorido e fotografia que remete à obra do cineasta Tim Burton – o que tem tudo a ver com o universo fantástico proposto pela novela. Além do charme da produção, os efeitos especiais – dignos de Hollywood – possibilitaram um acabamento que não era possível na versão original, já que os recursos disponíveis na época eram muito limitados.

Assim, a nova produção apresentou sequências com ótimo apuro técnico, como os voos de João Gibão (Sérgio Guizé); a união de Candinha e Tibério (Fernanda Montenegro e Tarcísio Meira), em que eles se transformam em árvore; a explosão de Dona Redonda (Vera Holtz), que foi aos ares por tanto comer; e as transformações do Professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes) em lobisomem.

Linhares atualizou a obra de Dias. Não apenas pelas modernidades tecnológicas que não existiam em 1976 (como tablets, comunicação por e-mail, smartphones e redes sociais), mas também pela abordagem crítica. Dias usou a metáfora da mudança para, sutilmente, criticar o governo do Regime Militar (que, naquele tempo, ensaiava seus primeiros passos para a abertura política).

Na trama da novela, os conservadores poderosos – os Tradicionalistas, também opressores e censores do povo – eram contra a mudança do nome da pequena cidade de Bole-Bole para Saramandaia, um movimento liderado pelos Mudancistas, que sugeriram essa alteração através de voto popular, num plebiscito. Na nova novela, teve até manifestação popular, em um momento em que o povo brasileiro saiu às ruas na série de manifestações que aconteceram entre junho e julho de 2013.

Desta vez, Linhares abordou a trama da cidade dividida (entre os Tradicionalistas e os Mudancistas) como metáfora para a intolerância. Nada mais apropriado, uma vez que vários moradores de Bole-Bole possuíam algum tipo de "anormalidade" aos olhos do que a maioria estabelecia como "normal". Aliás, uma das expressões mais usadas na novela era "sair do armário", ainda que não houvesse nenhum personagem gay na novela. Para bom entendedor…

Os "esquisitões" de Saramandaia: Zico Rosado (José Mayer) soltava formigas pelo nariz. Vitória Villar (Lília Cabral) se derretia – literalmente – de amores por Zico, enquanto Marcina (Chandelly Braz) pegava fogo quando excitada de paixão pelo amado, João Gibão, que, por sua vez, escondia de todos que possuía um par de asas. Seu Cazuza (Marcos Palmeira) ameaçava pôr o coração pela boca quando ficava nervoso. E Tibério (Tarcísio Meira) criou raízes em sua casa por não sair na rua há anos. Ah sim, e o Professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes) virava lobisomem em noites de lua cheia.

Algumas personagens e tramas novas foram criadas. O núcleo da família Villar, liderado por Vitória (Lília Cabral) era representado pela família Tavares em 1976, liderada por Tenório (Sebastião Vasconcelos), inimigo político da família Rosado. Ricardo Linhares, através de Vitória, criou uma paixão do passado mal resolvida (entre Zico Rosado e ela). Também o personagem Tibério Villar (Tarcísio Meira), o avô, que não existia em 1976, que havia sido o amor de adolescência de Candinha Rosado (Fernanda Montenegro).

Curioso notar que o DVD de "Saramandaia" chega às lojas exatamente no momento em que Ricardo Linhares enfrenta a rejeição do público pela sua nova novela, "Babilônia" (escrita com Gilberto Braga e João Ximenes Braga), e em que lideranças religiosas pedem boicote por causa, particularmente, do casal de lésbicas, vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg. Será que os Tradicionalistas não aprovaram?

Manteve-se a essência da obra de Dias Gomes, em que cidadezinhas fictícias (Bole Bole, Sucupira, Asa Branca) representam um microcosmo do Brasil. Qualquer semelhança entre ficção e realidade não terá sido mera coincidência. Por mais fantástica que sejam a ficção e a realidade.

Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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