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Afrânio de Antônio Fagundes em "Velho Chico" é como Dorian Gray do retrato

Nilson Xavier

20/04/2016 12h40

Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro como o Coronel Saruê nas duas fases da novela (Foto: Divulgação/TV Globo0

Antônio Fagundes e Rodrigo Santoro como o Coronel Saruê nas duas fases da novela (Foto: Divulgação/TV Globo0

Mudança de fase em novela é uma verdadeira temeridade. Iniciar uma nova etapa é como começar uma nova novela, com alguns elementos já conhecidos do público. Em 1987, Dias Gomes viu "Mandala" (Édipo, Jocasta, como uma deusa, lembra?) despencar na audiência e não se levantar mais quando a trama saiu da interessantíssima primeira fase na década de 1960 e entrou numa modorrenta contemporaneidade travestida de tragédia grega. Foi uma tragédia mesmo.

Benedito Ruy Barbosa separa suas histórias em partes desde "Pantanal", em 1990. Suas novelas "Renascer" (1993) e "O Rei do Gado" (1996) tiveram primeiras fases curtas e de grande aceitação junto aos telespectadores. Naturalmente houve algum estranhamento quando da transição para a nova etapa das histórias. Mas o autor nunca deixou de reconquistar seu público, mesmo envelhecendo personagens ou inserindo novas tramas para dar continuidade às suas sagas.

A primeira fase de "Velho Chico" causou alguma comoção com personagens de grande apelo, como Afrânio (Rodrigo Santoro), Capitão Rosa (Rodrigo Lombardi), Eulália (Fabíula Nascimento), Miro (Chico Diaz), Santo (Renato Góes), Tereza (Júlia Dallavia), Leonor (Marina Nery), Yolanda (Carol Castro) e outros. Na passagem para a fase atual da novela, alguns desses deixaram de existir enquanto outros ganharam novos intérpretes.

Respeitando o perfil já conhecido dos personagens nas fases anteriores, exige-se alguma coerência para além de "Camila Pitanga é nova demais para viver Tereza, com um filho desse tamanho e par de Domingos Montagner". Faço coro à premissa de que a idade real do ator pouco interessa diante de seus recursos cênicos para dar vida a tipos mais jovens ou mais velhos que ele – guardadas as devidas proporções, claro.

Por outro lado, salta aos olhos a repentina mudança visual e psicológica de um personagem sem um motivo realmente convincente. Aconteceu com Afrânio, então o "jovem Coronel Saruê", vivido por Rodrigo Santoro, que se transformou no "velho Coronel Saruê" completamente diferente quando passou a ser interpretado por Antônio Fagundes. O novo personagem em absolutamente nada lembra o antigo. O visual bufão, com peruca e roupas coloridas, o jeito bonachão e caricato de coronel arrogante (que remete à folclórica figura de Odorico Paraguaçu) está quilômetros longe da imagem humanizada criada por Santoro.

Um tipo apaixonante, contraditório em sua essência, o Afrânio jovem não pôde viver seu grande amor da juventude (Yolanda), mas tampouco deixou de amar a mulher com quem se casou (Leonor). Festeiro, alegre e inconsequente, teve que tomar as rédeas dos negócios e do poder herdadas do pai. Foi se fechando, endurecendo e perdendo a ternura. O público acompanhou toda a transformação do alegre Afrânio em Coronel Saruê, embalada por uma trilha sonora de bom gosto e uma fotografia belíssima.

A explicação para o Afrânio de Antônio Fagundes está no embrutecimento que a vida lhe causou ao longo dos anos, debatido numa cena da semana passada em que sua mulher Yolanda (Christiane Torloni) defende o marido para a filha dele, Tereza (Camila Pitanga). Além da interpretação caricata de Fagundes, lhe pesam seus trejeitos conhecidos do público de personagens como Bruno Mezenga (de "O Rei do Gado"), Juvenal Antena (de "Duas Caras") e até o recente vendeiro Giácomo (de "Meu Pedacinho de Chão"). A princípio, Fagundes não parece introduzir nenhuma novidade, a não ser emular Odorico Paraguaçu ao seu modo.

Por outro lado, pesa no público o carinho pelo personagem da fase anterior. Talvez o maior problema do velho coronel seja o jovem coronel, apaixonante e magnificamente bem defendido por Rodrigo Santoro. A comparação é inevitável e necessária. Também identifico no embrutamento do velho Coronel Saruê a figura de Dorian Gray (personagem de Oscar Wilde), o do retrato, vítima da passagem do tempo sobre seu corpo e sua alma. O Coronel Saruê de Santoro é o Dorian Gray jovem que o público insiste em guardar na memória.

Os autores e diretores de "Velho Chico" terão que trabalhar dobrado para reconquistar o público viúvo da fase anterior da novela. Os sinais já aparecem, através de bons entrechos e ótimas sequências vistas nos últimos capítulos envolvendo os personagens Luzia (Lucy Alves), Santo (Domingos Montagner), Piedade (Zezita Mattos), Bento (Irandhir Santos) e Beatriz (Dira Paes). Resta o velho coronel Saruê ganhar a simpatia e a empatia do público. Talvez seja apenas uma questão de tempo.

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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