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Romantização do machismo e da violência impossibilitariam remake de A Gata Comeu

Nilson Xavier

27/04/2017 12h04

Christiane Torloni e Nuno Leal Maia (Foto: Acervo/TV Globo)

O Viva exibe hoje (27/04) o último capítulo de "A Gata Comeu", um dos maiores êxitos do canal de reprises. A trama lidera a lista dos programas mais vistos no Viva Play (a plataforma on demand). E se hoje fosse produzido um remake? Como tratar a romantização do machismo e da violência contra a mulher fortemente presentes em sua trama?

"A Gata Comeu" é cultuada por uma legião de fãs, movidos pela memória afetiva, especialmente os que eram crianças quando foi exibida pela primeira vez (em 1985). A novela tem um forte apelo infanto-juvenil, tanto pela trama – com boa carga lúdica, sem muito compromisso com a verossimilhança – quanto pelo elenco de atores-mirins.

Escrita por Ivani Ribeiro, essa produção já era um remake em 1985: foi baseada em "A Barba Azul", trama da Tupi de 1974-1975, estrelada por Eva Wilma e Carlos Zara. A versão da Globo foi protagonizada por Christiane Torloni e Nuno Leal Maia, como Jô Penteado e o professor Fábio, papeis que marcaram suas carreiras.

Danton Mello, Nuno Leal Maia e Katia Moura (Foto: Acervo/TV Globo)

E se "A Gata Comeu" fosse produzida hoje em dia? Um remake dessa novela seria impossível na atualidade. Seriam necessárias tantas alterações no roteiro que os puristas reclamariam de descaracterização da trama. E manter o roteiro original esbarra em uma série de questionamentos de nossa sociedade moderna, tantos que praticamente inviabilizariam a produção.

Toda obra audiovisual deve ser analisada dentro do contexto histórico em que foi criada. É um equívoco criticar uma produção do passado com os olhos de hoje, tendo como base os padrões atuais da sociedade, do que é julgado como certo e errado pelo senso comum. Para a sua época (1985), "A Gata Comeu" coube perfeitamente no pensamento de seu tempo. Não fosse assim, não teria sido considerada uma novela despretensiosa, de apelo infanto-juvenil, exibida às seis da tarde.

Todavia, como esclarecer hoje os tapas que o Professor Fábio revidava em Jô, pelo simples "bateu, levou"? Com o agravante de que o perfil de Fábio é o de um homem correto, íntegro, pai e professor de crianças. Numa dessas situações, o tapa foi na frente de seus alunos. Em outra, ele se justificou: "porque ela me tira do sério!". O pior de tudo: a trama dá a entender que Jô se apaixona por Fábio porque foi esbofeteada.

José Mayer e Deborah Evelyn (Foto: Acervo/TV Globo)

Só ao final, a autora explica a paixão de Jô por seu algoz: Fabio, ao rejeitar Jô tão veementemente, lhe despertou um sentimento que ela tinha por seu pai: a ausência paterna após o segundo casamento dele. Ela não conseguia se apaixonar por homens bonzinhos, como o pai, permissivo traduzido como ausente. O primeiro homem que lhe impôs limites (através de violência), fez com que ela se apaixonasse, ao lhe remeter ao pai menos permissivo, porém mais presente, de sua infância.

Se essa situação tem realmente algum fundamento defendido pela Psicologia, teria que ser hoje discutido em uma novela das nove, não em uma trama infanto-juvenil. Os problematizadores de plantão exigiriam explicações bem mais plausíveis logo no primeiro tapa, no início da história. Imagina a quantidade de textões no Facebook achincalhando a novela!

Engraçado que a autora até aborda o machismo, através de outro personagem: Edson (José Mayer). Só que, neste caso, a discussão limita-se à figura do machão, que já era anacrônica na década de 1970 (quando foi ao ar "A Barba Azul"). Edson não aceita que a mulher trabalhe fora porque acha que o homem deve ser o provedor do lar. Apenas.

Roberto Pirilo e Fátima Freire (Foto: Acervo/TV Globo)

Outra incongruência com nosso tempo que poderia gerar muita controvérsia: a maneira como Tony (Roberto Pirilo) conquista Paula (Fátima Freire), que casou-se com ele sem estar apaixonada. Ele a envolve de tal forma e com tal domínio que acaba levando-a para o altar – contra a vontade dela. Essa insistência se repete na noite de núpcias. Romantização do assédio e do estupro? Afinal, houve vontade apenas de uma parte, do homem. Com o tempo, através de muita enganação, Tony consegue finalmente conquistar Paula.

Esta é uma discussão levantada com os olhos de hoje. Um regravação ipsis litteris de "A Gata Comeu" seria inviável nesses tempos de conscientização da posição e dos direitos da mulher e de luta contra o machismo e a violência. Eu prefiro "A Gata Comeu" como obra original, que se mantem como um clássico de nossa televisão, fruto de seu próprio tempo.

AQUI tem tudo sobre "A Gata Comeu", elenco completo, trama, personagens, trilha e curiosidades.
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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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