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“Eu sou inadequada”, afirma Laerte em documentário da Netflix

Nilson Xavier

26/05/2017 07h00

Foto: Miguel Manso.

Um diálogo por computador entre a cartunista Laerte Coutinho e a jornalista Eliane Brum dá início ao documentário "Laerte-se", disponível a partir deste mês na Netflix. Eliane faz parte da equipe de roteiristas e diretores do filme. Sofrendo de ansiedade, Laerte pede para adiar o primeiro encontro, que marcaria o início das gravações. Eliane a convence.

Assisti ao documentário sempre lembrando deste diálogo, da dificuldade e ansiedade de Laerte explicitadas logo no início. Várias passagens de "Laerte-se" soam assim: como processos difíceis de realizar, de sair, de serem ditos ou explicados. Mas não se iluda: nem a cartunista ou o filme têm pressa de explicar nada. O documentário levou três anos para ser gravado.

"Fiz algo que demorei sessenta anos para fazer" (sobre tornar-se mulher)

Por outro lado, o desconforto de Laerte não pesa o filme. Há outras passagens em que a vemos à vontade, como se a câmera tivesse finalmente se integrado ao seu dia a dia. Ou Laerte se integrado a ela. Parece que, no longo período de gravações, a cartunista aprendeu a lidar com essa interferência e essa exposição – outro processo!

As gravações do filme, a transgeneridade, a aceitação da família, a auto aceitação, a reforma da casa, decidir em colocar ou não colocar peitos: "Laerte-se" é sobre processos, longos, marcantes, às vezes dolorosos, mas que podem resultar em momentos leves e delicados.

Ou não: "Como foi a primeira vez que teu pai te viu vestida de mulher?" – "Ah, ficou puto!"

Com Eliane Brum (Foto: divulgação/Tru3Lab)

A única maquiagem do filme é a que Laerte usa. Sem o menor glamour ou cinismo, a cartunista se desnuda – também literalmente – ao falar da família, infância, trabalho, carreira, política, militância e amor. Anda pelas ruas, prova vestidos, desenha, conversa com vizinhos, vai a manifestações populares e encontros familiares. Mas não se trata de um exibicionismo vaidoso.

"A ideia de que a minha opinião vai orientar as pessoas é aterrorizante!"

A ótima edição faz o documentário parecer sem roteiro, natural, e acompanha a vida simples da cartunista em sua casa, no bairro do Butantã, em São Paulo. Animações que reproduzem suas charges dão um tom lúdico. O grande painel que Laerte pinta na abertura do filme, ao final, sintetizará quem ela é. Um grand finale, por sinal.

A bagunça da casa em reforma contrasta com sua indecisão em colocar ou não peitos. Laerte demonstra uma constante e incômoda inadequação e um anseio por mudanças ou por respostas. Uma de suas frases mais notáveis deixa claro:

"Eu sou inadequada. E minha casa, por extensão, também é".

A moradia como edificação para o corpo. E o corpo como edificação para a alma.

Foto: divulgação/Tru3Lab.

"Laerte-se", primeiro documentário brasileiro original da Netflix, produção da Tru3Lab, direção de Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum e roteiro delas e de Raphael Scire. Acesse a página do documentário na internet.

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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