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Caso Waack x Novela das 9: combate ao racismo ou reforço do preconceito?

Nilson Xavier

09/11/2017 12h00

Érika Januza e Eliane Giardini (Foto: reprodução)

Um bom exemplo de realidade refletida na novela: na noite em que repercutia o vazamento do vídeo com uma fala racista de William Waack (que lhe custou o afastamento do "Jornal da Globo"), a novela "O Outro Lado do Paraíso" exibiu mais cenas da personagem Nádia (Eliane Giardini) proferindo impropérios racistas contra a empregada Raquel (Érika Januza), "preta pobre do quilombo", que namora seu filho branco e rico, Bruno (Caio Paduan). Não foi um confronto direto, mas nem Waack foi direto ao motorista que o incomodou com sua buzina.

Até pouco tempo, o "Jornal Nacional" noticiava embates entre policias e bandidos em morros cariocas seguidos por sequências de "A Força do Querer" em que policiais de Jeiza (Paolla Oliviera) enfrentavam traficantes liderados por Sabiá e Rubinho (Jonathan Azevedo e Emílio Dantas). A telenovela brasileira, reconhecida no mundo pelo seu viés realista, parece perseguida pela realidade. Mas não. Violência urbana, racismo e tantas outras mazelas sociais sempre estiveram escancarados à nossa frente. A ficção não cria a realidade, reflete enquanto ela acontece.

À medida que a sociedade pressiona e a Globo se movimenta para condenar atos como o de William Waack, há de se refletir até que ponto a trama de Raquel x Nádia é realmente combativa ou se simplesmente reitera o racismo latente. Pela milionésima vez, uma novela aborda a trama da negra pobre que se apaixona pelo branco rico, sofre um calvário nas mãos de racistas para, ao final, ser feliz com seu príncipe – que é branco e rico. Após décadas sem representatividade em novelas, a não ser papeis de escravos ou de subalternos sem importância (com raras exceções), já não era para termos superado a fase "negra pobre que se apaixona pelo branco rico" – como se ela precisasse do aval de um branco para ser aceita, tanto pela cor quanto pela condição social?

Juan Paiva e Ana Hikari (divulgação) | Sabrina Petráglia e Marcello Melo Jr. (reprodução)

Todas as outras produções da Globo atualmente no ar também apresentam tramas que abordam questões raciais. "Malhação, Viva a Diferença" exibiu nos últimos capítulos a sequência em que o rapaz negro Fio (Lucas Penteado) é abordado por seguranças em uma festa "de maioria branca" por ser negro e pobre. Há ainda o romance proibido entre Tina e Anderson (Ana Hikari e Juan Paiva) e a personagem Ellen (Heslaine Vieira), menina negra e pobre enfrentando o preconceito no colégio rico em que é bolsista.

Na novela das seis, "Tempo de Amar", outro romance proibido, entre Edgar e Olímpia (Marcello Melo Jr. e Sabrina Petráglia), inclusive pela mãe negra do rapaz que é casada com um branco. A novela das seis – uma trama de época – tem ainda outros personagens negros, mas todos em funções subalternas – a única exceção é o núcleo de Edgar. Quanto a "Pega Pega", a atração das sete, várias sequências envolvendo racismo foram apresentadas, através do núcleo familiar de Cristóvão (Milton Gonçalves).

Neste momento sinistro de nossa sociedade, em que todas as formas de ódio têm ganhado cada vez mais vozes, é preciso pensar a maneira como temas como o racismo são abordados em nossa Teledramaturgia. De nada adianta simplesmente reproduzir a realidade – fala de Waack no Jornal da Globo x fala de Nádia na novela das 9. Afirmar que "isso acontece todos os dias" é apenas repetir um discurso como um papagaio: é cômodo, não agrega e não promove a reflexão. A negra pobre da novela das 9 que se apaixona pelo branco rico é combativo ou apenas reforça estereótipos e reitera o preconceito? É útil, é inútil ou é um desserviço?

A trama de Raquel em "O Outro Lado do Paraíso" está apenas começando. Espera-se que ela saia do lugar comum e avance para além desse discurso batido e cansativo. Já estava na hora da Teledramaturgia fazer seu mea culpa por décadas e décadas de estereótipos cristalizados.

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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