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Sem referências brasileiras, “Ligações Perigosas” parece cinema americano

Nilson Xavier

04/01/2016 22h59

Patrícia Pillar / Selton Mello / Marjorie Estiano (Foto: Divulgação/TV Globo)

Patrícia Pillar / Selton Mello / Marjorie Estiano (Foto: Divulgação/TV Globo)

A história é francesa, do século 18, e conhecida do público através de Hollywood. A não ser pelo elenco, quase não há referências brasileiras. Principalmente pelas locações. E é proposital: para não parecer "uma novela de Benedito Ruy Barbosa".

A Globo apostou em uma história universal, já conhecida, para a minissérie que abre 2016: "Ligações Perigosas" (estreia desta segunda, 04/01), baseada no clássico francês de Choderlos de Laclos (de 1782), adaptada por Manuela Dias e dirigida por Vinícius Coimbra (em núcleo de Denise Saraceni). O público médio reconhece a trama das duas adaptações mais famosas, os filmes "Ligações Perigosas" (1988), com Glenn Close, John Malkovich e Michelle Pfeifer, e "Segundas Intenções" (1999), com Sarah Michelle Gellar, Ryan Phillippe e Reese Witherspoon.

Assistindo, na telona do cinema, aos dois primeiros capítulos (em uma sessão especial para a imprensa, em dezembro), a primeira impressão que ficou foi a de ver uma produção cinematográfica, hollywoodiana, da mais alta qualidade – só que com atores brasileiros. Chamou a atenção a falta de referência ao Brasil. A trama se passa na década de 1920 em uma fictícia cidade litorânea – que pode estar em qualquer parte do mundo. Nem a trilha sonora ajuda, já que mistura música erudita com charlestons e outros ritmos e modalidades musicais, e quase nenhuma alusão à música brasileira – pelo menos por enquanto, só Ernesto Nazareth.

Foi proposital. Palavras do diretor Vinícius Coimbra na ocasião: "para não parecer uma novela de Benedito Ruy Barbosa". Muitas das gravações externas aconteceram na Patagônia (como as deslumbrantes tomadas na praia, com vista para falésias) e interior da Argentina. Umas das fachadas mais usadas (a mansão de Consuelo/Aracy Balabanian) é o Palácio de Santa Cândida, em Concepción Del Uruguay. Mas alguns prédios históricos do Rio de Janeiro e Niterói podem ser reconhecidos.

Leopoldo Pacheco / Alice Wegman / Jesuíta Barbosa (Foto: Divulgação/TV Globo)

Leopoldo Pacheco / Alice Wegman / Jesuíta Barbosa (Foto: Divulgação/TV Globo)

Alta tecnologia de televisão que emula os primórdios do cinema

A um custo 30% mais caro, a minissérie foi gravada em 4k, tecnologia que proporciona quatro vezes mais resolução de imagem que o HD. Só vai perceber a diferença quem tiver um televisor compatível – ou seja, poucos ainda, já que a tecnologia é nova. Todavia, é perceptível que o 4k confere ares de cinema à produção. E essa não foi a primeira vez: a série "Dupla Identidade" (2013) já havia sido produzida em 4k.

Paradoxalmente, "Ligações Perigosas" foi "filmada" com maneirismos dos primórdios do cinema – muitas sequências com apenas uma câmera, o que demandou um esforço maior do elenco. A fotografia (assinada pelo francês Jean Benoit Crépon) aumenta a sensação de cinema: entre outros recursos, fez uso de refletores potentes e fumaça, para desfocar os ambientes e destacar os atores.

As tomadas são bonitas e criativas. Como a sequência na casa de chá em que Heitor (Leopoldo Pacheco) revela a intenção de se casar com a virgem Cecília (Alice Wegman): a câmera dá uma volta ao redor da mesa enquanto acontece o diálogo. Ou quando Isabel acerta uma taça na testa de Heitor. O elenco está ótimo, com destaque às interpretações de Patrícia Pillar, Selton Mello, Marjorie Estiano e a jovem Alice Wegman.

"Ligações Perigosas" tem todo o apelo necessário para segurar o público em seus dez capítulos. E se engana quem pensa que vai ver sexo e "muitos nudes" – como anda mal-acostumado o público do horário. A minissérie sugere, mas não mostra. Já no primeiro capítulo, Cecília e sua amiga de internato quase se beijam. Só que não.

Em tempo: é raro a Globo adaptar para a TV (em formato de novela ou minissérie) uma obra literária não genuinamente brasileira. Com exceção do português Eça de Queiroz ("O Primo Basílio" e "Os Maias") e da "era Magadan" (primórdios da Globo, nos anos 1960), apenas o romance "La Luna Caliente", do argentino Mempo Giardinelli, foi transformado em minissérie, em 1999 – e, mesmo assim, a trama foi transportada da Argentina para o sul do Brasil. Também pode-se citar a novela "O Cravo e a Rosa" (2000-2001), que teve como ponto de partida a peça "A Megera Domada", de Shakespeare – mas a trama se passava em São Paulo.

Leia também: Maurício Stycer, "Globo 'desidrata' e tira a força de Ligações Perigosas para exibi-la cedo".

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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