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Com trama ultrapassada, "O Outro Lado" teve público certo: o conservador

Nilson Xavier

11/05/2018 23h12

Marieta Severo (foto: reprodução)

Imagine que a trama de "O Outro Lado do Paraíso" se passasse na década de 1940, com os personagens em figurinos de época e alguns ajustes pontuais. Não ia mudar absolutamente nada! Sem tirar nem por, a novela de Walcyr Carrasco pareceu concebida para uma atração de época do horário das seis. O texto, as situações, as falas e comportamentos do personagens, todos anacrônicos, ultrapassados, fora do contexto de nosso tempo (e não é porque o interior do país seja, talvez, "atrasado" quando comparado ao Rio ou São Paulo). O alvo? Um público mais conservador. Ou que não está a fim de ser desafiado ou instigado.

O dinamismo foi a maior qualidade do roteiro do autor, que mostrou fôlego com mil e uma reviravoltas e o poder de fisgar o público e mantê-lo grudado em sua história por seis meses, causando catarses e, assim, fidelizando a audiência. Porém, para dar conta da trama ágil, Carrasco abriu mão de um texto mais elaborado e caiu no simplismo de diálogos repetitivos e rasteiros em entrechos batidos e situações forçadas, mandando a coerência e a verossimilhança às favas e subestimando a inteligência do espectador. E assim, com uma trama envolvente, mastigada e de fácil assimilação, conquistou a audiência.

Desta forma, a novela descambou para um festival de maniqueísmo, reiteração de falas e tramas (à exaustão), diálogos tatibitate e humor de gosto duvidoso, carregados pela mão pesada do autor, sem filtro, nuances, meios-termos ou sutilezas. O que agradou em cheio uma audiência que não estava interessada em pensar ou refletir, mas apenas em se desligar da realidade do dia a dia e se deixar levar e divertir passivamente. O que é louvável, afinal telenovela é, acima de tudo, entretenimento.

Laura Cardoso (foto: reprodução)

Direção e elenco

A direção (equipe de Mauro Mendonça Filho) apresentou um ótimo trabalho na primeira fase da novela, valorizando a produção através da iluminação, arte e trilha sonora, com tomadas sofisticadas, destacando os cenários naturais do Tocantins. Porém, a partir da segunda fase, ficou evidente o desnível com o texto de Carrasco, o que forçou os diretores a acompanhar o roteiro ingrato do autor. Mesmo assim, em momentos pontuais, a direção teve resoluções bem administradas para o texto: a fuga de Clara do manicômio, seu retorno triunfal, o julgamento do pedófilo e o casamento de Mercedes e Josafá foram alguns dos melhores momentos da novela.

Por outro lado, direção e elenco acabaram algumas vezes contaminados pelo simplismo. Glória Pires pareceu pouco à vontade em sua personagem. A cena da atriz e de Juca de Oliveira na morte do personagem dele foi um dos momentos mais constrangedores da novela, em que os atores não conseguiram escapar do texto raso e da direção pouco cuidadosa. Atuações que deixaram a desejar em uma encenação digna dos piores dramalhões latinos.

Se Glória e Juca, atores tarimbados, escorregaram no texto de Carrasco, imagina os mais jovens cujas cenas demandavam estofo. Neste quesito, ficaram devendo Caio Paduan e Érika Januza, com personagens importantes na trama. Rafael Cardoso repetiu as caras e bocas de outros vilões que interpretou. Ainda: Bianca Bin, ótima na primeira fase da história, caiu na armadilha da cara de paisagem para justificar uma personagem fria e vingativa; e Julia Dalavia ficou limitada a uma personagem ruim e sem camadas, diferente de seus trabalhos anteriores, pelos quais foi bastante elogiada.

Em contrapartida, brilharam Eliane Giardini, que imprimiu personalidade e carisma à sua personagem racista; Fernanda Montenegro, que tentou levar com dignidade uma personagem nada crível; Marieta Severo, que sabiamente fugiu do tom cômico na criação da vilã maniqueísta; e Laura Cardoso, que mesmo com uma personagem pequena, deu a impressão de se divertir em cena. Há de se registrar ainda as ótimas atuações da experiente Ana Lúcia Torre e da novata Bella Piero, e o desperdício de Fábio Lago, Zezé Motta e Tainá Müller, atores talentosos relegados a papeis menores e sem importância.

Bianca Bin e Sergio Guizé (foto: reprodução)

Irresponsabilidade social

Na pretensão de abordar temas sociais, Walcyr Carrasco meteu os pés pelas mãos e mais prestou desserviços do que suscitou discussões ou conscientização para a sociedade.

A única abordagem levada com alguma coerência foi a pedofilia, cuja sequência do julgamento do pedófilo foi aplaudida (menos o final, quando tudo vira um salseiro). Mesmo assim, arranhada com uma polêmica. Por que um problema grave como o enfrentado pela personagem Laura foi tratado por uma advogada novata que fez um curso de coach e aprendeu a fazer hipnose? Por que Laura não procurou um profissional experiente da área específica, um psicólogo ou um terapeuta? Porque tratava-se de um "merchan", uma ação paga pelo Instituto Brasileiro de Coaching. Assim o autor forçou uma situação para justificar a ação de merchandising. Pegou mal, muito mal.

Ao tratar racismo, homossexualidade, nanismo, alcoolismo, violência doméstica, assédio, corrupção e prostituição, o autor perdeu a oportunidade da abordagem profunda, conduzindo tudo para a caricatura ou a discussão rasa, com desfechos mal alinhavados e vazios. "O Outro Lado do Paraíso" promoveu o deboche de minorias e oprimidos através do humor anacrônico, apelativo e de mau gosto que não cabe mais nos dias atuais – pejorativamente chamado de "humor Zorra Total". Escárnio de prostitutas, gays e anões disfarçado em alívio cômico. Uma lástima.

Todo avanço conquistado por "A Força do Querer" na discussão sobre homossexualidade e transexualidade pareceu jogado ladeira abaixo cada vez que surgia o núcleo gay de "O Outro Lado do Paraíso". É como ter avançado 2 passos e depois voltado 3. Em vez de garantir o patamar alcançado para não haver retrocesso, Carrasco só reforçou preconceito, estigmatização e estereótipos. Assim, o autor passou seis meses pregando a cura gay e ridicularizando homossexuais desprezados pelas famílias para, ao final, dar uma conclusão paliativa (a mãe aceitou o filho porque ele ameaçou abandoná-la).

Da mesma forma, a racista, que durante a novela inteira proferiu impropérios contra negros, ao final, como num passe de mágica, tomou consciência de seu preconceito. Não houve a intenção de levar homossexualidade e racismo à pauta da sociedade, apenas apresentar como alívio cômico para fisgar audiência. Um desserviço se pensarmos que personagens preconceituosos (assim como os vilões) funcionam como uma válvula inconsciente de escape, para que o público extravase o preconceito através de esquetes de humor.

O personagem Gael (Sérgio Guizé), o violentador de mulheres no início da trama, foi outra abordagem infeliz do autor. Em vez de aprofundar o tema da violência doméstica, Carrasco preferiu a redenção do violentador. Ou seja, não se discutiu nada, já que o personagem apenas serviu à trama romântica. E o que dizer da anã Estela (Juliana Caldas), apresentada meramente como uma atração grotesca para despertar a curiosidade do público! Perdeu-se a oportunidade de levantar as dificuldades e o preconceito sofrido por anões. Visibilidade, só se for negativa, já que Estela apenas serviu de chacota para outros personagens. Outra lástima.

Se a proposta da novela era uma "fantasia", como declarou o autor, por que colocar na trama temas de interesse social que não conseguiu abordar eficientemente?

Bianca Bin e Marieta Severo (foto: reprodução)

Audiência vs. Qualidade

Massacrada por todos os lados pelas críticas à qualidade do texto e da trama, "O Outro Lado do Paraíso" termina com Ibope na Grande SP em torno dos 38.5 pontos, inferior a "Avenida Brasil", o último grande sucesso do horário, que fechou nos 38.8 (leia abaixo). O último capítulo cravou 46 pontos, bem menos que o último de "A Força do Querer" (50) e de "Avenida Brasil" (52).

Sabemos que Ibope mede audiência, não qualidade, e que audiência e qualidade nem sempre andam juntas. Para explicar o ibope da novela, vários fatores podem ser considerados, como a fraca concorrência, a crise econômica e o hábito de manter a TV ligada na Globo. Mas o principal mérito de "O Outro Lado do Paraíso" foi entregar o que o público aceitou e com o que se envolveu: diversão através de escapismo e fuga da realidade, sem gerar questionamentos ou fazer raciocinar.

Sob este prisma, o folhetim de Walcyr Carrasco cumpriu com louvor a sua meta: entreter somente. E para um público certo: não apenas o que só está interessado em relaxar, mas também o que se diverte com piadinhas sobre gays, negros, anões e prostitutas, e que pensa com a mentalidade da década de 1940, como os personagens da trama.

Novela nenhuma tem a obrigação de fazer merchandising social. Não precisa ter campanha de conscientização nem resvalar no politicamente correto. Entretanto, quando a obra se propõe a isso (caso de "O Outro Lado do Paraíso"), espera-se um mínimo de qualidade e o comprometimento com a pauta da sociedade. Melhor que a trama tivesse ficado no  horário das seis.

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"O Outro Lado do Paraíso termina abaixo de Avenida Brasil no ibope".
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Fernanda Montenegro (foto: reprodução)

Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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