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Megalômana e pretensiosa, "Deus Salve o Rei" não funcionou na prática

Nilson Xavier

30/07/2018 20h25

Bruna Marquezine (Foto: reprodução)

Com o último capítulo exibido nesta segunda-feira (30/07), "Deus Salve o Rei" entra para a história como uma das novelas mais pretensiosas já produzidas pela Globo. O risco era enorme e o investimento altíssimo. Abusou-se dos mais modernos recursos de computação gráfica e efeitos especiais, que resultaram em um verdadeiro show de exibicionismo técnico. Cenários, figurinos e arte que nada deixaram a desejar às melhores produções medievais estrangeiras. Tecnicamente falando, foi tudo lindo.

Logicamente a ideia era mirar o público de séries com temática medieval, como "Game of Thrones", ainda em voga. E um público certo: o jovem. E de maneira premeditada: arregimentando os milhões de fãs que o trio Bruna Marquezine, Marina Ruy Barbosa e Tatá Werneck tem nas redes sociais – só no Instagram, juntas elas somam quase 80 milhões de seguidores. Boba a Globo? Nem um pouco. Mas há por trás uma justificativa mais sensata do que apenas o alcance da audiência: a manutenção do público jovem, que cada vez mais se afasta da TV aberta.

Para tanto, a Globo ousou e arriscou ao deixar de lado a tradicional fórmula que ela mesma perpetuou para as novelas da faixa das 19 horas: a comédia (romântica, de costumes, de situação). "Deus Salve o Rei" seguiu uma linha soturna, na trama, na estética e na interpretação dos atores. Foi tudo vários tons acima: a empostação nas falas, a solenidade nos gestos, a sobriedade dos ambientes, a guerra e a peste na trama. Nem o alívio cômico escapou incólume: Tatá Werneck, Johnny Massaro e companhia não ousaram ultrapassar o humor comedido, mais sustentado em frases de efeito do que no pastelão.

Johnny Massaro e Tatá Werneck (Foto: reprodução)

"Deus Salve o Rei" foi uma aposta que teria resultado em uma grande tragédia, não fosse a direção (da novela e da emissora) entender os caminhos equivocados e tomar rapidamente decisões para voltar atrás. O primeiro deles: a interpretação de Bruna Marquezine como a fria princesa Catarina. Fui o primeiro a chamá-la de robótica, em meu texto publicado logo após a exibição do primeiro capítulo. Aquilo não estava bom e tomou de surpresa todos que acompanharam a trajetória da atriz desde criança na TV.

Culpa de Bruna? Logicamente não! Culpa da direção artística de Fabrício Mamberti, por seguir uma linha de interpretação que, convenhamos, funcionaria melhor em um palco. Imediatamente a atriz foi orientada a mudar o tom e partir para uma interpretação mais naturalista, o que a fez dar a volta por cima e fez de Catarina uma das melhores da novela. Palmas para Bruna Marquezine, que levou dignamente a personagem até o final. E para a direção, que entendeu o mau passo e recuou.

Bruna não foi a única com interpretação acima do tom imposta pela direção: também Marco Nanini, com falas e gestual exageradamente solenes, Caio Blat, sempre de cara amarrada, e Rômulo Estrela, sussurrando a novela inteira. Rômulo seguiu até o fim, sussurrando, Caio pulou fora, enquanto Nanini, depois de afastado um tempo, retornou com outro tom. Marina Ruy Barbosa, como a outra protagonista, tinha em mãos uma personagem, digamos, mais fácil. Talvez por Amália não ser nobre, a direção não tivesse exigido da atriz uma interpretação over.

Marina Ruy Barbosa e Rômulo Estrela (Foto: Artur Meninea/TV Globo)

O outro obstáculo que "Deus Salve o Rei" tentou contornar foi a trama. O autor Daniel Adjafre – em sua primeira novela solo – apresentou uma história sustentada em uma premissa muito frágil, inconsistente e pouco crível (até mesmo para uma fantasia medieval): o rei, apresentado como honrado e justo, que abandona seu povo à própria sorte nas mãos do irmão pateta e incompetente pelo amor de uma plebeia do reino vizinho, que por sua vez se negara a reinar com ele. Não demorou muito para a trama da novela patinar e a audiência torcer o nariz.

Em seus primeiros meses, "Deus Salve o Rei" se resumiu ao que chamei acima: um show de exibicionismo técnico. A embalagem era linda, mas não havia conteúdo que a sustentasse. É sabido desde sempre que apuro técnico por si só não ampara um filme, série ou novela. Quando ficou claro que o autor estava perdido em seu roteiro, a direção da emissora (entenda Silvio de Abreu) providenciou um interventor para salvar a novela do desastre, Ricardo Linhares. Aí veio a fome, a peste, a guerra, a morte…

Adjafre e Linhares providenciaram o sumiço de vários personagens, vítimas da guerra ou da peste. Alguns com destaque na trama, como Cássio (Caio Blat), conselheiro do rei, Martinho (Giulio Lopes), pai de Amália, e Saulo (João Vithor Oliveira), um soldado. Alexandre Borges foi convocado para ser o grande vilão da história, enquanto Catarina passava por uma humanização – parte do processo de ajuste da personagem. A trama ganhou dinamismo e a audiência subiu. Enquanto Amália ficou ainda mais chata, as bruxas ganharam mais destaque, principalmente Brice (Bia Arantes).

Bia Arantes (Foto: reprodução) | Marina Moschen (Foto: Artur Meninea/TV Globo)

Independentemente do roteiro, a novela fez brilhar as atuações de Marina Moschen, como a bruxa guerreira Selena (atriz jovem e talentosa com muito potencial), e Johnny Massaro, como o príncipe parvo Rodolfo, perfeito na dobradinha com Tatá Werneck. Massaro ainda teve o mérito de dar conta das mudanças de personalidade de seu personagem no período em que a trama tateou no escuro, quando Rodolfo mesclou cenas de pantomima com tirania extrema – a prova cabal de um roteiro completamente perdido naquele momento.

Apesar de todos os problemas, "Deus Salve o Rei" não pode ser considerada um fracasso. A novela atendeu às expectativas mínimas da Globo: chegou ao fim com uma média geral de 25.50 pontos no Ibope da Grande São Paulo. Mas é um número inferior às últimas quatro produções do horário: "Pega Pega" (28.80), "Rock Story" (25.90), "Haja Coração" (27.50) e "Totalmente Demais" (27.40). Ganha apenas de "I Love Paraisópolis", de 2015, que fechou com 23.50 pontos (curiosamente, também com Marquezine e Tatá).

Uma novela arriscada cujos problemas foram contornados. Mas sem nenhuma reviravolta extraordinária. O saldo é positivo se considerarmos a ousadia da emissora em ofertar algo novo ao público, em fugir do "mais do mesmo", em mirar o jovem em detrimento das donas de casa, e em adquirir experiência em searas pouco exploradas. Ponto para a Globo. Ao mesmo tempo, bate aquela dúvida: como o roteiro inicial foi aprovado? Apostou-se na teoria sem avaliar como seria na prática?

Rômulo Estrela e Marco Nanini (Foto: reprodução)

Diante do crescimento do Ibope na reta final (a novela teve um grande ganho de audiência em seu último mês), a emissora minimiza os problemas e posa sua produção como vitoriosa, o que só a faz soar ainda mais megalômana e pretensiosa. Não me admiraria se a novela concorresse ao Emmy e ganhasse: pelo menos a embalagem é de encher os olhos.

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Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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