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Félix é o novo Crô

Nilson Xavier

27/12/2013 15h23

Crô (Marcelo Serrado) e Félix (Mateus Solano) (Foto: Divulgação/TV Globo)

Crô (Marcelo Serrado) e Félix (Mateus Solano) (Foto: Divulgação/TV Globo)

A novela "Fina Estampa" (de Aguinaldo Silva, exibida entre 2011 e 2012) tinha uma protagonista (Griselda/Lília Cabral) e uma antagonista (Tereza Cristina/Christiane Torloni) maniqueístas e bem populares. Mas, talvez, o grande responsável pelo sucesso deste folhetim tenha sido um personagem coadjuvante: o mordomo Crodoaldo Valério, o Crô, vivido magistralmente por Marcelo Serrado. Crô era um homossexual afetado, espirituoso, com um linguajar e um modo de vestir muito peculiares. E bem caricato. A típica caricatura do gay de programas humorísticos populares. Crô caiu nas graças do público, que o adorava, por ele ser carismático, "do bem", inteligente, queridinho e engraçado. Era um gay fofo. O sucesso do personagem foi tanto que lhe rendeu um filme, atualmente em cartaz.

Quando estreou, em maio, "Amor à Vida" causou espanto, principalmente pela direção inspirada, aliada a uma fotografia escura, em cenas clipadas e nervosas. Mas o que chamou a atenção mesmo foi o vilão Félix, o personagem de Mateus Solano. Cruel, vil, invejoso, ele não pensou duas vezes em jogar a sobrinha recém-nascida em uma caçamba de lixo, pois aquela criança poderia ser um empecilho para sua futura escalada de poder dentro do hospital da família. Tão mau quanto Carminha (Adriana Esteves), que abandonou a pequena Rita (Mel Maia) no lixão de "Avenida Brasil". Tanto que Félix chegou a ser comparado a Carminha. E ganhou um apelido: Bicha Má.

A Bicha Má de "Amor à Vida" em nada lembrava o Crô, a não ser pela língua ferina. A novela foi avançando e, lá pela metade, Félix já havia tomado o lugar dos protagonistas da trama no interesse do público. Paloma e Bruno têm uma relação insossa. Os atores – Paolla Oliveira e Malvino Salvador – têm pouca química em cena, não empolgam. Nem dá para torcer por eles. Félix continuou sua escalada de maldades: entre outras atrocidades, planejou o sequestro da sobrinha Paulinha (Klara Castanho), com a ajuda de Ninho, o pai biológico e desmiolado da menina.

Após Félix ter saído do armário diante da família, notou-se uma mudança brusca no perfil do personagem. A Bicha Má trouxe à tona o drama do filho desprezado pelo pai homofóbico (César/Antônio Fagundes). Se a intenção do autor, Walcyr Carrasco, era fazer o público se apiedar de Félix, conseguiu a contento. Afinal, suas maldades eram justificáveis? Félix passou então a travar uma ferrenha luta contra o pai pelo poder dentro do Hospital San Magno. Foi quando se deflagrou o segundo golpe duro para o personagem: todos ficaram sabendo que ele havia jogado Paulinha bebê na caçamba de lixo.

Escorraçado da família Khoury, odiado por todo mundo, renegado pela própria mãe (Pilar/Susana Vieira), Félix comeu o pão que ele mesmo amassou. Foi quando o personagem encontrou o apoio de Márcia (Elizabeth Savalla), que o levou consigo para vender "hot-dogs" na rua 25 de Março. De repente, diante de tanto sofrimento, o personagem parece ter caído em si, foi mostrando seu lado afetuoso. E quanto mais bonzinho se mostrava, mais engraçadinho e mais caricato. Hoje, Félix usa um shortinho vermelho justíssimo, uma flor no cabelo e desmunheca para vender os "hot-dogs" de Márcia.

Nos últimos capítulos, o filho de criação de Félix, Jonathan (Thales Cabral), tentou abrir os olhos de Pilar para a mudança e regeneração do pai. Pegando pesado no melodrama familiar, o autor tenta convencer o telespectador de que Félix mudou, tornou-se uma alma boa, e que merece perdão. Para aumentar ainda mais o amor do público pela "bicha divertida" da novela das nove, Carrasco cria um envolvimento amoroso entre a ex-Bicha Má e Niko (Thiago Fragoso), até então, o único gay bonzinho da novela.

O mais curioso é perceber que Félix, que um dia foi capaz de jogar um bebê no lixo, está se apaixonando por Niko, que, durante toda a trama, acalentou o desejo de ser pai. Sim, eu também acho tudo muito bonito e cor-de-rosa. Não fosse o fato de Félix não ter pago pelas suas maldades – mesmo tendo se regenerado aos olhos do público.

O que tem Crô a ver com tudo isso? Nada. A não ser o fato de Walcyr Carrasco ter decidido fazer com que Félix trilhasse o mesmo caminho que o personagem de Aguinaldo Silva: o da figura gay caricata, carismática e engraçada, querida por todos. Aguardem por "Félix, o Filme".

Nisso tudo, vejo um lado bem positivo: diferente de Aguinaldo, que não ousou revelar a identidade do amante de Crô, Carrasco expõe a vida amorosa de Félix, criando assim um casal gay caricato e fofo. O mais interessante de tudo: o público está torcendo por Félix e Niko enquanto não está nem aí para Paloma e Bruno, o casal hétero normativo protagonista de "Amor à Vida". Isso sim é inédito em novelas.

Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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