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Gilberto Braga errou ao retratar pobres como idiotas em “O Dono do Mundo"

Nilson Xavier

23/11/2014 13h36

Malu Mader e Antônio Fagundes, protagonistas de

Malu Mader e Antônio Fagundes, protagonistas de "O Dono do Mundo" (Foto: Reprodução/Internet)

Em entrevista a Arnaldo Jabor, para a Folha de São Paulo, em junho de 1991, o novelista Gilberto Braga declarou: "Eu não aguentava mais ver tanta impiedade por parte das elites brasileiras em relação aos miseráveis. Pensei em fazer uma novela questionando a falta de carinho dos ricos pelos pobres. (…) Fiz uma novela sobre o egoísmo, a bondade e a maldade."

Ele se referia ao seu folhetim "O Dono do Mundo", recém estreado na época – em reprise atualmente no canal a cabo Viva. A história do rico cirurgião plástico Felipe Barreto (Antônio Fagundes), que apostou (uma caixa de champanhe importado) que era capaz de levar uma noiva virgem – Márcia (Malu Mader) – para a cama, antes do noivo, em plena noite de núpcias. Claro que Felipe atingiu seu intento e claro que a noiva, ultrajada e renegada por todos, iniciou uma batalha por vingança contra seu algoz.

Márcia não foi renegada apenas na ficção. O país inteiro torceu o nariz para a heroína torta de "O Dono do Mundo". Felipe, o sedutor canalha, não fez nada à força. Seduzida e completamente apaixonada, foi a própria virgem que lhe bateu à porta se oferecendo. O público não perdoava o fato de Márcia ter tão facilmente cedido ao cirurgião. Mais que a questão da virgindade, o que afugentou a simpatia do telespectador foi a falta de lealdade de Márcia com seu noivo.

A queda na audiência foi tamanha que, logo em seu primeiro mês de exibição, a novela de Braga passou por reformulações consistentes. O Viva exibiu nesta semana a cena em que a enfurecida Márcia parte para cima de Felipe e lhe arranca sangue da cara com um bisturi. E acaba presa. Esta foi uma das primeiras medidas tomadas para tentar fazer com o que o povo se apiedasse da protagonista.

De um lado, ricos arrogantes, do outro, pobres ingênuos (Foto: Reprodução/Internet)

De um lado, ricos arrogantes, do outro, pobres ingênuos (Foto: Reprodução/Internet)

Revendo estes primeiros capítulos com um afastamento de 23 anos, fica mais claro entender o que aconteceu. Gilberto Braga afirmou que não aguentava ver tanta impiedade das elites em relação aos pobres. E isso é evidente neste primeiro mês da novela. O autor carregou forte demais nas tintas para destacar os ricos dos pobres. Os abastados não eram só muitos ricos (da classe A), mas também muito arrogantes e preconceituosos com as classes "inferiores". Neste contexto, destacam-se, além de Felipe Barreto, também a sua mãe, Constância Eugênia (Nathalia Timberg), e a socialite Karen (Maria Padilha).

Enquanto isso, os pobres eram retratados como antiquados, atrasados, incultos e ingênuos – verdadeiros imbecis. Além de Márcia, sua madrinha Nanci (Ana Rosa), seu tio Darci (Antônio Grassi), o taxista Vicente (Cláudio Corrêa e Castro) e sua mulher Almerinda (Beatriz Lyra), e toda a vizinhança do subúrbio. Os pobres mais "espertos" – vamos assim colocar – eram a prostituta Thaís (Letícia Sabatella), que escondia de todos sua condição, e Beija-Flor (Ângelo Antônio), um rapaz de bom coração, mas, neste início da trama, envolvido com marginais.

E não havia meio termo em "O Dono do Mundo". Os personagens mais boas-praças – como a cafetina Olga (Fernanda Montenegro) ou a socialite Stela (Glória Pires) – estavam à margem desta discussão classista. De fato, era difícil para o telespectador mais humilde (a grande maioria do público da novela) se identificar com sua classe refletida daquele jeito na televisão. O tiro do autor saiu pela culatra. Pesando a mão ao mostrar as diferenças entre classes de uma forma extremista, Braga parecia zombar do povão.

Pretensiosa, "O Dono do Mundo" se propunha realista na discussão sobre o preconceito aos mais humildes. Mas errou feio ao traçar de forma maniqueísta o universo que separa ricos de pobres. Tanto que, entre as reformulações pelas quais a trama passou para conquistar audiência, estava a chegada de personagens de classe média e de pobres cômicos. Mais adiante, Braga vai brincar com a própria trama central através de uma nova personagem, a engraçada Teresinha (Tássia Camargo), que aposta um engradado de cerveja de que é capaz de levar para a cama o ricaço Júlio (Daniel Dantas).

Aos olhos de hoje, "O Dono do Mundo" soa interessante, como uma obra de ficção que se propunha a traçar um retrato de uma época – ainda que de maneira torta. De produção impecável e com um elenco grandioso, como folhetim, é um excelente entretenimento. Todavia, o Brasil de hoje é muito diferente daquele de 1991, economicamente falando. E se fosse produzida atualmente, a novela de novo sofreria rejeição. Com um maior poder aquisitivo, o povão também conquistou uma maior autoestima e orgulho por sua classe. Novamente não iria gostar de se ver retratado de forma tão pitoresca na televisão.

Sobre o autor

Nilson Xavier é catarinense e mora em São Paulo. Desde pequeno, um fã de televisão: aos 10 anos já catalogava de forma sistemática tudo o que assistia, inclusive as novelas. Pesquisar elencos e curiosidades sobre esse universo tornou-se um hobby. Com a Internet, seus registros novelísticos migraram para a rede: em 2000 lançou o site Teledramaturgia (http://www.teledramaturgia.com.br/), cujo sucesso o levou a publicar o Almanaque da Telenovela Brasileira, em 2007.

Sobre o blog

Um espaço para análise e reflexão sobre a produção dramatúrgica em nossa TV. Seja com a seriedade que o tema exige, ou com uma pitada de humor e deboche, o que também leva à reflexão.

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